quarta-feira, 12 de setembro de 2007

"E com a palavra ...Carlos Drummond"



"Minha querida amiga Cora Coralina:

Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que

não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e

comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência

humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com

as fontes da vida! Aninha hoje não se pertence. É patrimônio de nós

todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia (...).

Não lhe escrevi antes, agradecendo a dádiva, porque andei malacafento

e me submeti a uma cirurgia. Mas agora, já recuperado, estou em

condições de dizer, com alegria justa: Obrigado, minha amiga!

Obrigado, também, pelas lindas, tocantes palavras que escreveu para

mim e que guardarei na memória do coração.

O beijo e o carinho do seu

Drummond."

Andrade, Carlos Drummond de [Rio de Janeiro, 7 out. 1983]. Carta de Drummond. In: Coralina, Cora. Vintém de cobre : meias confissões de Aninha. 4. ed. p. 23.



Cora Coralina, de Goiás.

“Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina.

Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando musica de sereias antigas e de Dona Janaína moderna

Cora Coralina, pra mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é por exemplo, uma estrada.

Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos:

“Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado,/ acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro de mim/ a lavadeira do rio vermelho. Seu cheiro gostoso dágua e sabão”. “Vive dentro de mim/ a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito”. “Vive dentro de mim/ a mulher proletária. / Bem linguaruda, / desabusada, sem preconceitos”. “Vive dentro de mim/ a mulher da vida. / minha irmãzinha... / tão desprezada, / tão murmurada...”.


Todas as vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua condição humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve a Ode às Muletas como a Oração do Milho. No primeiro texto foi a experiência pessoal que a levou a meditar na beleza intrínseca desse objeto(“Leves e verticais. Jamais sofisticadas. / Seguras nos seus calços / de borracha escura. Nenhum enfeite ou sortilégio”). No segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as coisas atribui ao milho estas palavras: “Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece. / sou o cocho abastecido donde rumina o gado. / sou a pobreza vegetal agradecida a vós, Senhor.”.


Assim é cora coralina: um ser geral, “coração inumerável”, oferecido a estes seres que são outros tantos motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente, o presidiário, a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem de gado, os bonecos e sobrados, o prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho extinto da família. Este prato faz jus a referencia especial, tamanha a sua ligação com usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: “Ás vezes, ia de empréstimo / à casa da boa Tia Norita. / E era certo no centro da mesa/ de aniversário, com sua montanha / de empadas bem tostadas / No dia seguinte, voltava, / conduzido por um portador/ que era sempre o abdenago, preto de valor, / e, melhor cheirinho / de doces e salgados. / tornava a relíquia para o relicário...”.


Relicário é também o sortido deposito de memórias de Cora Coralina. Remontando a infância, não a ornamenta com flores falsas: “éramos quatro as filhas de minha mãe. / entre elas ocupei sempre o pior lugar”. Lembra – se de ter sido “triste, nevorsa e feia. / Amarela de rosto empalamado. / de pernas moles, caindo à toa”. Perdera o pai muito novinha. Seus brinquedos eram coquilhos de palmeira, caquinhos de louça, bonecas de pano. Não era compreendia. Tinha medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidária das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica.


Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na sua solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou fazendo comercial da editora, em época de festas. A obra foi publicada pela universidade federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles. Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros sem estabelecermos critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios.

Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesma se define: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na Gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentimento de analfabetismo”. Opõe a morte “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui e gosto de ter sido. Mulher operária”.

Cora Coralina: gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira."

Carlos Drummond de Andrade

(Jornal do Brasil, cad. B, 27 – 12 – 80)





3 comentários:

Unknown disse...

Gosto muito dessa escritora, vou ler todos os posts de vocês. Já têm um leitor assíduo desse trabalho de vocês.Até.Afonso

Andreisson Martins disse...

se drummond falou tá falado

Anônimo disse...

Cora Coralina me faz amar mais a vida. Ela já é parte de mim, vive no meu coração e na minha memória.Ela me alegra quando preciso. É tão piegas o que eu disse, mas é tão verdade.

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